8 de maio de 2023

A Última Guerra

 O último mês viu o nascimento do ChatGPT. Pela primeira vez, um programa de computador é capaz de responder à perguntas como um ser humano. Muitas vezes, melhor do que um ser humano. Ao invés de discutirmos a qualidade do código por trás deste feito tecnológico, estamos nos perguntando: O que é inteligência? Quais empregos serão eliminados? O que é vida?

Então, esta semana, Hinton, um dos mais conceituados experts na área de Inteligência Artificial, considerado o pai da tecnologia por trás do ChatGPT, saiu do Google porque está com medo do que AI fará com o mundo, como criar robôs assassinos, estilo Matrix ou Exterminador do Futuro. Se AI for usada de forma errada, diz ele, vai matar todo mundo.

Comecei então a perguntar para diversas pessoas o que elas acham que seria o maior o problema de usar Inteligência Artificial, e notei um certo padrão. Professores tem medo de que seus alunos escrevam teses inteiras, sem ter que pensar. Analistas de mercado tem medo de que os robôs movam dinheiro mais rápido do que eles conseguem manipular. Escritores tem medo de que histórias comuns e sem graça tomem o espaço da criatividade e experiência pessoal. E homens brancos e poderosos como Hinton tem medo de que as máquinas se tornem mais poderosas do que eles e matem todo mundo. Inteligência Artificial se tornou a grande tela em branco onde projetamos nossos maiores medos.

Eu sou mulher, latina, imigrante, tenho 46 anos de idade. Os robôs não podem me tirar nada. Pelo contrário. Diariamente, o ChatGPT tem me ajudado a me expressar melhor em uma língua que eu sei falar mas não entendo os nuances perfeitamente. Uma Inteligência Artificial criou a sequência de aparelhos ortodônticos que vão tornar mais lindo ainda o sorriso da minha filha. AI me ajuda a navegar nesta cidade nova, sem o risco de me perder, encontrando borboletários e restaurantes. Ferramentas de busca me mostram como viviam os Algonquin, e a história deste povo indígena permanece viva, para sempre, na internet e na memória da minha filha. No final de um longo dia de trabalho, o YouTube me ajuda a conhecer o comediante irlandês e eu dou risada sozinha. Semana que vem, caminharei em um parque com mulheres como eu porque usamos nossos emails para encontrar e conversar em um grupo de MeetUp. Todos os dias eu vejo minha família e meus amigos do outro lado do mundo, de graça. Publiquei meus livros no mundo inteiro, instantaneamente. A tecnologia é minha amiga.

Voltando aos super soldados... Eu sei que novas tecnologias, qualquer uma, da pólvora ao gás mostarda, da bomba nuclear à pedra lascada, será usada pelos militares. Qual exército, podendo, não iria desenvolver e usar a arma perfeita? Um robô que não sente dor, tem mira perfeita, e é imortal?

Mas também sei que ao longo dos anos, milhões de humanos usam tecnologia todos os dias para melhorar, ajudar, consertar, colaborar, criar, inovar, humanizar. Minha esperança é que, quando mais de um país tiver o robô exterminador, nós possamos fazer a última guerra. A guerra para acabar com as outras guerras, desta vez de verdade.

A Guerra dos Robôs será uma nova versão da guerra fria. Ao invés de mutilar, destruir e arrasar cidades e populações, nações poderão simplesmente colocar seus robôs para brigar, de preferência em simulações, em uma versão super tecnológica do xadrez. Ganhar esta simulação significa que você ganharia a guerra, então sentam todos em um mesa, e conversam sobre próximos passos. Finalmente teremos criado a arma perfeita, e ela será usada para acabar com todas as outras. Não é ideal, eu sei. Ainda teremos nações poderosas, que poderão dominar outras. Mas isso será feito sem matar crianças e homens jovens, arrasar cidades inteiras, destruir famílias e gerar mais ódio. Eu chamo isso de progresso.

E então poderemos usar nosso tempo, dinheiro e recursos, para que essa mesma nova ferramenta nos ajude a encontrar soluções para os problemas do meio ambiente, do futuro das novas gerações, da conquista do conhecimento, da melhoria da vida. De todos.


Meu pai me perguntou porque chamamos o ChatGPT de "o" ChatGPT, e não de "a" ChatGPT. Respondi que eu ficava dividida. Acredito que devíamos parar de dar nomes femininos aos assistentes virtuais, porque isto reforça a ideia de mulheres em posição de servidão e ajuda. Ao mesmo tempo, pela primeira vez na nossa história, temos um programa de computador que pode se tornar a maior ferramenta de decisão do mundo. Quando mulheres tem poder, a desigualdade diminui, a economia melhora, organizações se tornam mais eficientes. Quando mulheres participam de processos de negociação de acordos de paz, isso aumenta a chance deles serem bem sucedidos. Mulheres são a força motriz por trás de movimentos pacifistas,  organizações de apoio à infância e muito mais. 

Se o futuro da inteligência artificial for feminino, temos esperança.


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Imagens geradas pelo Dall-E, sistema de Inteligência Artificial.

18 de novembro de 2022

Mas isto não dói.

 Escutei uma piada esta semana, sobre millenials e a relação deles com ansiedade:

Milenial fala: - Eu tenho um transtorno sério de ansiedade.
A outra pessoa responde: - Nossa, sinto muito ouvir isso. Você vai se tratar, fazer algo a respeito?
Milenial responde: - Não. Estou te contando para que você se adapte à minha situação.

Eu sou GenX, nascida em 1976. Minha irmã mais nova, nascida em 1980 já está na tansição. Eu tenho uma grande admiração pelos millenials, e essa é mais uma faceta deles que difere brutalmente da minha geração: a relação com as próprias doenças, especialmente as relacionadas à saúde mental. Mas vamos começar pela dor física.

O título deste post se refere às muitas vezes que eu, geralmente em uma consulta médica, ao relatar dor, ouvi: "Mas isso não dói." Variações desta frase foram ditas para mim quando:

- Eu estava com cólica mas já tinha tomado todos os remédios possíveis ("Mas você não devia estar sentindo dor ainda.")

- Na recuperação das minhas duas cesáreas ("Mas cesárea você nem sente.")

- No dia seguinte de uma aula experimental de Pilates ("Mas isso não é dor, é o corpo acostumando")

- Um ano depois das minhas cesáreas ("Mas a área já está totalmente cicatrizada")

- Ao sentir dor no corpo ao acordar por causa de fibromialgia ("Mas você deve ter dormido de mal jeito, porque seu corpo não dói sem motivo")

- Ao reclamar de dor nos ombros e nas costas ao final do dia por causa do peso dos meus seios ("É só arrumar a postura das suas costas que pára de doer. Alça de soutien não dói.")

- Ao investigar um caroço no meu seio porque doía quando alguém me abraçava ("Mas isso é só um cisto, isso não dói.")

- Ao mancar por semanas depois de machucar o joelho caindo da bicicleta ("Mas já era para não estar doendo mais")

- Ao tentar abrir latas, garrafas e até mesmo a torneira do chuveiro ("Mas já estava quase aberta, não doi a mão abrir isso não.")

- Quando eu tive um cisto ovariano (não rompido), mas dobrava de dor no chão do hospital ("Mas se não rompeu, não devia estar doendo.")

E qual foi a minha reação? Achei que eu que estava errada. Achei que o que eu acreditava que era dor devia ser normal. Eu normatizei a dor na minha vida, convivi com ela por muitos, muitos, muitos anos. E isso afetou minha vida de maneiras que eu acho que nem consigo medir. Porque não só eu sentia dor, como eu achava que não devia estar sentindo.

Somente depois de muita terapia, CBC e uma vida menos ansiosa, e, recentemente, tentar comer menos glúten (assunto para um post futuro) que as dores em geral começaram a diminuir. E essa nuvem de irritação constante e ansiedade se dissipou um pouco. 

As pessoas que me conhecem me acham super concentrada, e que isso é uma vantagem. Eu me pergunto se essa capacidade de concentração em algo não é resultado de anos tentando não prestar atenção no meu corpo, no meu ambiente. De entrar na minha cabeça e me dedicar tanto aos meus pensamentos que eu não percebo que meus ombros doem, minhas costas doem, meus pés estão formigando, minhas mãos estão meio dormentes, meu pescoço está meio congelado. E isso tudo porque eu estou sentada em uma cadeira de escritório ergonômica com suporte lombal e lembrando de fazer meus exercícios, não ficar muito tempo na mesma posição e com um soutien que tem suporte extra. Senão, ia ser muito pior.

Voltando aos millenials, eles não engolem esse papo de que "a dor está na sua cabeça", ou que "você que tem que aguentar". E eu os admiro demais por isso. Doenças mentais são ainda mais difíceis de provar do que dor. Eu lidei com ansiedade social e depressão por anos, e nunca pedi ajuda. Eu acreditava que era minha culpa de não estar "dando conta". Ainda não iluminei a ponto de achar que a sociedade e as pessoas à minha volta é que tem que resolver essas questões para mim, mas já acho que minha experiência pessoal é importante e que deve ser respeitada, primeiramente pelos médicos, e depois por todos aqueles que gostam de mim. 

Se eu falo que está doendo, @ médic@ tem que acreditar em mim. Se o treinamento que el@ recebeu diz que não, beleza, eu sou um caso novo, que precisa ser estudado. Talvez seja meu autismo? Talvez porque eu sou mulher, um pequeno detalhe historicamente ignorado pelas pesquisas científicas na medicina? Talvez meu cérebro seja intrinsicamente diferente? O porque vai fazer toda a diferença no tratamento, mas, primeiro, eu tenho que ser levada a sério.

Enquanto isso não acontece, eu vou resolvendo como posso, sem vergonha de expor minhas limitações. Como outras pessoas da minha família, eu tenho distúrbio de processamento auditivo. Isso significa que eu escuto o que as pessoas falam, mas não entendo direito (quem é GenX aqui vai lembrar do "AudiSom, para quem escuta mas não entende bem as palavras."). Pois é, já fiz tudo quanto é audiometria que você possa imaginar, deu tudo normal. O problema não é na captação do som, mas sim em como os sons são interpretados no meu cérebro: eu escuto bem, mas não consigo separar fala de ruído ambiente, ou certos sons [nota: achei alguns artigos que sugerem que este é um problema comum em crianças que tiveram muitas infecções de ouvido na primeira infância; seu cérebro não é treinado a reconhecer os sons direito porque eles chegam distorcidos...]. Na hora de ver TV, eu ponho legenda. Meu celular tá sempre no volume máximo. Bares, shopping cheio, festas e restaurantes com música ambiente são o meu desespero.

Quando eu mudei para o Canadá, resolvi tentar de novo, porque ouvir em outra língua, com sotaques e com as máscaras durante o COVID me transformaram em praticamente surda, já que eu contava muito com leitura labial e contexto para entender. Resultado dos exames: tudo 100% ok de novo. Aí eu perguntei para a médica: "Mas eu continuo não entendendo as pessoas! O que eu faço???" E a resposta dela foi: "Pede para eles falarem mais alto, ou repetirem."

É isso. A solução dela foi: "Faz o mundo se adaptar a você." Eu fiquei chocada, revoltada mesmo. Como eu vou fazer isso? Fiquei triste e revoltada por uns dias, e então resolvi fazer um bottom dizendo exatamente isso: "Dificuldade de Audição. Por favor, fale mais alto e mais devagar." E eu uso em todos os lugares onde eu entender o que as pessoas falam é importante: médicos, lojas, agências do governo. Ajuda mesmo. Não resolve cinema (aqui não tem legenda) e nem conversas sociais, mas, no geral, me sinto bem melhor.

Obrigada, millenials.

P.S.: Estou avaliando outras soluções, como aparelho de audição (que meu pai já usa) e até mesmo um dispositivo passivo que parece interessante (ou um hoax). Vou dando notícias. 

24 de outubro de 2022

Oi, como vai?



Há quase três anos atrás, em Dezembro de 2019, eu chegava em Toronto, no Canadá, para começar uma nova vida com minhas duas filhas e meu marido. Já falei aqui das dificuldades iniciais, da transição, do medo do fracasso, de ser demitida, de me achar uma incompetente. Mas a coisa mais simbólica para mim, sempre foi a minha primeira interação com as pessoas daqui.

Quando eu entro em uma loja, ou reunião, as pessoas perguntam: "Hi, how are you?" (Oi, como vai?). Quando eu cheguei, e por muito tempo depois, essa pergunta sempre me pegava desprevenida. Empolgada, brasileira, sempre na correria e na ansiedade, eu respondia: "Great!" (Estou ótima!)

Bom, por aqui, ninguém nunca está great. As respostas mais usuais e que todo mundo espera são "Not so bad, thank you, and you?" (Não estou mal, obrigada, e você?)  ou "Good, good, thank you. And you?" (Bem, bem, obrigada. E você?). Aí a primeira pessoa manda um "I'm good too, thank you. How can I help?" (Eu estou bem também, obrigada. Como posso ajudar você?").

Para estar great, tem que ter um motivo. Ganhou na loteria, nasceu uma criança, vai casar, ganhou promoção no emprego. Então, quando eu respondia great, a pessoa já me olhava interessada, esperando eu explicar o por que desta alegria toda. Aí eu emendava um "And you?" (E você?). 

A cara de confusão das pessoas era de dar dó. Porque elas não sabiam porque eu estava tão great, e elas não estavam great, então a resposta padrão de "eu também" não rolava. Ficava aquele silêncio esquisito, eu começava a falar de novo já pedindo o que queria, elas assumiam que eu sou meio maluca, e daí pra frente só piorava. Enfim, toda interação minha no Canadá começava com um mal entendido.


Sim, eu sei o que você estava pensando: Ana, só fala "Not so bad" e pronto. Parece fácil né? Mas cada interação esquisita gerava mais ansiedade para a próxima. Eu ficava me vigiando pensando: "Não fala great, fala not bad!" E adivinha o que saía? Great de novo. Mesmo eu não estando great, porque estava ansiosa, desesperada com o que eu tinha que resolver, sem entender nada, com medo de parecer rude.

E aí veio o COVID em Março de 2020, isso tudo foi para o online, piorou tudo, o mundo acabou, bom, você estava lá. Em Agosto de 2020 eu estava tendo crises de ansiedade paralisantes, chorava o dia inteiro. Eu não estava nada great, e comecei terapia semanal e a tomar CBD.

Hoje eu pedi alta da terapia. De Agosto de 2020 até Outubro de 2022, foram mais de dois anos de Terapia Humanista com o Luis Maciel, um profissional maravilhoso, que esteve do meu lado nas muitas trocas de emprego, nas minhas dúvidas sobre minha capacidade profissional e intelectual, na montanha russa emocional. O Luis me ouviu e me guiou por insights que me ajudaram a mudar, a aceitar e a entender o que eu quero e quem eu sou nesse novo mundo.

Durante estes dois anos, encontrei um trabalho que gosto e faço bem, descobri que tenho passatempos e alergia a glúten, minhas filhas foram adaptando à escola e aos novos amigos, meu marido foi tendo oportunidades de desafios incríveis no trabalho e voltou a correr meia maratonas. Mudar para cá foi a coisa mais difícil que eu já fiz na minha vida, quase me quebrou, mas eu dei conta.

Semana que vem daremos nossa primeira festa no Canadá. Os convidados são, na imensa maioria, brasileiros, imigrantes também. Achamos nossa comunidade aqui, e vamos celebrar o Halloween com eles. Me parece bem apropriado que seja uma festa celebrando o assustador, o medo, o estranho, com pessoas que sabem o que significa ter que passar por esta experiência.

Alguns deles estão aqui há muitos anos, alguns chegaram há meses. Todos nós tentando ajudar e ser ajudado, abrindo os braços e entendendo que tem dores que só o tempo vai curar, e tem aprendizados que só a vivência vai trazer. Mas que vai melhorar, e que o futuro existe.

E quando meus convidados chegarem, e me perguntarem como eu estou, vou poder finalmente responder: "Estou bem, obrigada. E você?"

2 de fevereiro de 2022

Menos Steve Jobs, mais Bill Gates


Em 2015, Bill Gates fez uma palestra do TED sobre Pandemias, e como não estávamos preparados para elas. Essa palestra é a base de um episódio do começo de 2019 da série "Explicando" do Netflix, chamado "The Next Pandemic". Estamos em 2022, e sabemos como o mundo está, seguindo tudo que foi previsto por Bill Gates.

Bill Gates é famoso por ter criado o Windows na década de 80 (a Microsoft foi criada em 1975, o Windows foi lançado em 1985). Na verdade, era famoso... muitas crianças hoje em dia não sabem quem ele é, eu perguntei. 


Como conhecedora de tecnologia, desde que me lembro, segui a onda de achar Gates o "nerd" que ninguém queria ser. Falei muito mal do Windows a partir do momento que adquiri meu primeiro Mac, criticando a quantidade de vírus, a lerdeza, a falta de eficiência. Repeti dezenas de vezes a piada: Windows é aquele carro lento e barato, que você acha as peças na oficina de bairro, mas que nada funciona exatamente bem; Mac é a Ferrari, que custa caro, mas tem um desempenho inacreditável; e Linux é, bem, um pinguim (no sentido de que na época quem usava Linux era só a galera esquisita hardcore de programação). 

Steve Jobs era o "nerd" que todo mundo queria ser: empreendedor, visionário. Sua imagem de camisa polo preta apresentando o primeiro iPad em abril de 2010, "a magical device", era o pico do sonho americano de correr atrás do seu sonho, sem comprometer sua visão, a qualquer custo.

Mas os anos passaram. Gates saiu da direção da Microsoft em 2014, e migra do nerd de camisa xadrez dos anos 80 para o senhor de polo azul, fazendo TED talks, e salvando milhões de vidas através do combate à malária em países sub-desenvolvidos. A Apple, por outro lado, se torna a empresa de maior valor do mundo, mesmo sem Steve Jobs, que morreu em Outubro de 2011. 

Mas vamos comparar as mentalidades, através de citações famosas dos dois. Começando com Steve Jobs:

“Innovation distinguishes between a leader and a follower.” (Inovação é o que distingue um líder de um seguidor.)

“Your time is limited, so don’t waste it living someone else’s life.” (Seu tempo é limitado, então não o desperdice vivendo a vida de outra pessoa.)

“Don’t let the noise of others’ opinions drown out your own inner voice.” (Não deixe o barulho das opiniões dos outros abafar sua própria voz interna.)

“You can’t connect the dots looking forward; you can only connect them looking backwards. So you have to trust that the dots will somehow connect in your future.” (Você não consegue ligar os pontos olhando para frente; você só consegue conectá-los olhando para trás. Então você te que acreditar que os pontos vão de alguma forma conectar no seu futuro.)

“Be a yardstick of quality. Some people aren’t used to an environment where excellence is expected.” (Seja a medida da qualidade. Algumas pessoas não estão acostumadas à um ambiente onde se espera excelência.)

Sexy, não? Poderoso. Acredita nas próprias opiniões, sem se deixar influenciar pelos outros, buscando a excelência, sendo líder e inovador.

Vamos agora ouvir Bill Gates:

“Success is a lousy teacher. It seduces smart people into thinking they can’t lose.” (O sucesso é um professor péssimo. Ele seduz as pessoas inteligentes, fazendo elas pensarem que não vão perder nunca.)

“We all need people who will give us feedback. That’s how we improve.” (Todos nós precisamos de pessoas que nos dêem feedback. É assim que nós melhoramos.) 

“Patience is a key element of success.” (Paciência é a chave do sucesso.)

“The belief that the world is getting worse, that we can’t solve extreme poverty and disease, isn’t just mistaken. It’s harmful.” (A crença de que o mundo está piorando, que não podemos resolver a pobreza e as doenças, não é só errada. Ela é danosa.)

Não é a toa que os discursos de Bill Gates não são reproduzidos pelos empreendedores de palco! Eles são a esperança de uma sociedade mais justa, leva em conta o que os outros estão pensando. Bill Gates é famoso por ler compulsivamente sobre tudo, em profundidade. Suas opiniões sobre pandemias e aquecimento global são estudadas, embasadas em fatos e ciência, e cuidadosas. Lembrando que ele podia passar o dia inteiro só tomando caipirinha na praia, o esforço que o segundo homem mais rico do mundo faz para tentar melhorar a vida das pessoas menos privilegiadas do planeta é um exemplo incrível de como podíamos todos ser.

O discurso em torno de Steve Jobs é que, sem nunca ter frequentado a faculdade, ele foi o maior gênio da nossa geração. Steve Jobs escolheu para símbolo de sua empresa a Apple, a maçã da tentação, por um motivo. Ele foi genial em criar dispositivos (iPhone, iPod, iPad) que permitiam a cada um de nós pensarmos somente nas nossas opiniões, ouvirmos as nossas músicas, tirarmos as nossas fotos, e ficarmos cada vez mais centrados no nosso mundo interno. Não estou dizendo que ele é culpado do isolamento e das bolhas acentuadas pelas redes sociais, mas que o mundo em que vivemos combina com o sonho dele, não tenho dúvidas. Basta dizer que ele era tão convicto das próprias ideias que morreu devido à um câncer que ele demorou para tratar, por duvidar da ciência e dos médicos.

Sem Steve Jobs, teríamos talvez telefones menos eficientes, com redes sociais menos onipresentes, compartilhando nossa música, conteúdo e menos centrados em nossas próprias fotos e pontos de vista. Sem Bill Gates, milhões de crianças teriam morrido de malária.

Precisamos repensar o que, como sociedade, vamos definir como gênio. Eu voto no Bill Gates.

5 de dezembro de 2021

(Des)Encanto: quebrando o mito da mulher especial

** Atenção! Este post é um grande spoiler. Não continue lendo se não viu o filme ainda. ***

Assistimos à Encanto hoje. A nova animação Disney/Pixar me fez chorar por praticamente um quarto do filme. Ao sair do filme, me senti terminando uma sessão de terapia, daquelas das boas.

O motivo do filme ter me tocado tanto parecia óbvio para mim, mas lendo online, não encontrei nenhuma crítica que comentasse o que, para mim, é o foco principal do filme: a desconstrução do mito da mulher especial, em todas as suas formas. Cada uma das mulheres da família de Mirabel, a personagem principal, tem um poder especial, e cada um deles representa um dos papéis aos quais as mulheres são subjugadas.

Luiza, a forte

O motivo pelo qual o filme foi tão poderoso para mim, foi que ele foi muito ruim no começo. Eu não conseguia empatizar com Mirabel no começo. A menina que não tem poderes especiais e fica esperando um milagre me deu uma preguiça... admito que achei ela mimada. Pensei cá com os meus botões: essa menina é muito folgada. Não é assim não, filha! Tem que fazer esforço para ser especial.

E aí apresentaram a Luisa. A irmã Luisa tem força supernatural. Mas, por causa disto, está ansiosa e cansada. E eu identifiquei total. E fiquei com mais raiva do filme ainda. Porque achei um absurdo a Disney criar um personagem incrível de "mulher forte",  só para dizer que ela, por dentro, tá cansada, estressada, sobrecarregada. Hércules nunca nem suou... sacanagem.

Isabela, a bela

Mas aí, apresentaram o dilema da irmã Isabela, linda, perfeita, sempre feliz, sem nunca ter um fio de cabelo fora do lugar, que tem como poder criar flores belas. E o problema dela é que ela ia casar por obrigação, com alguém que ela não ama, só porque é o que esperam dela. E aí tudo clicou no lugar.

O motivo pelo qual eu fiquei com raiva, é exatamente o que o filme critica. Os mitos da mulher especial. Cada personagem é um deles, e eu estava, até esse ponto, defendendo o meu: o da "mulher forte". Este estereótipo é geralmente associado à mãe leoa, à mulher guerreira, e mais recentemente à mulher multi-tarefa. É a mulher que dá conta de tudo, que é o suporte de todos, que diz sim para todo mundo, que carrega o mundo nas costas; mas cujo preço é a ansiedade e a impossibilidade do descanso. A personagem é masculinizada, forte fisicamente, uma referência à mulher que "é quase um homem". 

Abuela, a que
cuida de todos
Daí para frente, tudo ficou claro. A irmã Isabela representa o mito da beleza, a "feminilidade", quase tóxica, cujo papel, literalmente, é enfeitar o mundo. Para explicitar ainda mais sua "feminilidade", Isabela mora em um quarto completamente cor de rosa. O preço que ela paga é casar com alguém que ela não ama, por causa da família. Um homem lindo e bom partido, que a família escolheu para ela.

A Abuela (avó), embora não tenha poderes, tem a vela mágica que criou toda a vila. Representa a "mulher responsável por todos", que, literalmente, toma conta da cidade toda, dita as regras da família, e decide o que é moral e correto. Simbolicamente, ela faz tudo isso sem a presença do marido. É a simbologia da geração mais velha, e da alta proporção de lares na América Latina que não tem a presença paterna, por violência, escolha ou encarceramento.

Julieta,
a cozinheira
A mãe Julieta tem o poder de curar as pessoas com sua comida. Com isto, ela herda o papel de "mulher responsável por todos" e adiciona o de "boa cozinheira". O preço que pagamos pela ideia da mulher ser naturalmente cuidadora é que esta se torna a justificativa "biológica" para a mulher ser a principal responsável pelos trabalhos domésticos e pelos cuidados dos idosos e crianças. No filme, inclusive, o marido dela é o principal consumidor de suas receitas, para sarar picadas de abelha.

Pepa,
a imprevisível
A próxima é a Tia Pepa, que tem o poder de controlar o clima. Pouco explorada no filme, Pepa parece a única cujo poder tem um lado ruim. Sempre em altos e baixos, representa a mulher que não consegue controlar seus sentimentos, ou que tem que abafá-los. Em vários momentos do filme, sua "nuvem de chuva" aparece, e alguém a critica por isto. Representativa do choro feminino, e da "histeria feminina", Pepa representa o mito de que mulheres são imprevisíveis (como o tempo), e que não sabem se controlar. O preço que ela paga, além de ter seus sentimentos constantemente invalidados, é ser tratada como uma criança sem controle.

Dolores é a prima que tem o poder da audição perfeita. Representa o mito da mulher fofoqueira e que não sabe manter segredos. De todos os personagens é a menos desenvolvida, inclusive porque seu principal dilema é um amor não correspondido, em um filme que, felizmente, não foca muito nos arcos amorosos. 

Mirabel, a
mulher comum.
E Mirabel? Mirabel não é nada disto. Mirabel é a mulher comum. Que tem dúvidas, é inteligente (usa até óculos) e tem um coração imenso (segundo sua mãe). Mas
que ajuda, em passos maravilhosos de sororidade, as outras mulheres a se libertarem de seus "poderes" que são praticamente maldições. Não é a toa que quando Mirabel começa a questionar a integridade da casa, as outras mulheres começam a se abrir com ela, e começam a perder seus poderes; começam a se permitir se sentirem fracas (Luisa), não serem perfeitas (Isabela), não cuidar do marido (Julieta) ou da vila (Abuela).

E eu chorando. Porque esta é uma mensagem que nós, mulheres, especialmente mulheres latinas, não estamos acostumadas a ouvir. De que não precisamos ser perfeitas, princesas, especiais. Que somos suficientes. 

A parte mais surpreendente para mim foi o conflito com a Abuela. Imagino que a crítica era à mãe, mas dado o péssimo histórico da Disney com mães (ou a falta dela, ou as muitas madrastas), acho que o filme acerta de novo em pular uma geração e colocar a origem do sentimento de inadequação de Mirabel na avó. É muito interessante ver o filme apontar que somos nós, mulheres, principalmente mães, que reproduzimos os estereótipos, e preparamos os meninos e meninas do futuro dentro da visão machista.

Somos nós que comentamos quando as amigas estão acima do peso. Que falamos para nossas filhas como elas tem que se vestir e se comportar. Que damos aos meninos permissão para serem violentos e agressivos porque "meninos são assim mesmo". Que fofocamos e competimos umas com as outras. O grande poder de Mirabel é a sororidade: escutar e entender a luta de todas as mulheres.

Obviamente o patriarcado é o grande culpado, mas o filme acerta muito em mostrar que somos nós, mulheres, que temos o poder de propagar e de quebrar este ciclo. Na minha interpretação, esse é o grande "Bruno" do filme. O filme é uma discussão sobre o machismo e o patriarcado, sem nunca colocar os homens no papel principal. Não falamos sobre o Bruno, porque Bruno sabe que o feminismo, representado por Mirabel, irá quebrar todos estes mitos. 

E o que vai acontecer depois, só depende de nós.

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PS 1: Achei particularmente poderosa a solução de que a casa foi reconstruída pela vila. De que todos aqueles que se beneficiaram dos poderes destas mulheres por anos agora são responsáveis por ajudá-las a reconstruir sua vida.

PS 2: Tem mais uma personagem feminina no filme: a casa. A casa é responsável por grande parte das tarefas domésticas, como arrumação e ajuda às personagens principais. Como as milhares de mulheres latinas que trabalham como empregadas domésticas, é uma personagem invisível, sem voz. Essa é uma crítica que precisamos ouvir. Nem a Disney, famosa por empregar ratos e mágica para esconder as tarefas domésticas, conseguiu resolver esse problema. Embora no final do filme a redenção venha para as mulheres da família, a casa que as serve volta a ser o que era. Continua servindo, invisível e muda.

10 de outubro de 2021

Fui abandonada por Ted Lasso. Mas não vou reverter à barbárie, apesar de ser minoria.

Cadê as minorias mesmo?
 Terminei de assistir à segunda temporada de Ted Lasso.

Me sinto traída, abandonada, enganada.

A primeira temporada, que merecidamente ganhou diversos prêmios, foi um alento de alegria, bondade, bom humor em um ambiente televisivo marcado pela pandemia, tristeza, amargura. 

Ted Lasso chegou prometendo, e entregando, uma nova versão do masculino e do feminino, um mundo onde éramos mais gentis, mais abertos, mais felizes. Engraçado e delicado, confesso que chorei em vários episódios. O final da primeira temporada redefiniu o que era ganhar, o que era uma relação saudável, o que era amizade e amor. Um primor.

Começa a segunda temporada, e o clima é diferente. O primeiro sinal de que as coisas seriam diferentes foi o relacionamento de Sam Obisanya com sua chefa, Rebecca. Em plena era pós #MeToo me pareceu imperdoável que Rebecca ficasse incomodada com o fato de ser mais velha do que ele, mas não de ser chefa dele! Já comecei a torcer contra o casal.  No final da temporada (SPOILER), ele fica sem ela, sem a oportunidade de ser o jogador mais importante de um time no seu próprio país, e decide... abrir um restaurante?

O segundo ponto é o arco de Natan. O personagem vai crescendo durante a segunda temporada, não de uma forma saudável. Natan começa a disputar poder com Ted, mostrando sinais de ganância, superficialidade. Ao questionar o Coach Beard "Vocês às vezes não sentem vontade de ser o chefe?", recebe uma resposta surreal nas linhas de: "Segundo o trabalho de fulana, árvores crescem sem disputar o sol. Elas são uma comunidade socialista, não de competição." Isso não faz o menor sentido em um ambiente onde claramente tem um chefe (Ted). E o que Natan queria era apenas ser reconhecido por seu trabalho e suas ideias, que é exatamente o que Ted faz no final, mostrando que Natan estava certo em querer isto... 

Quando Natan chega a beijar Keeley, em seu projeto de se aproximar do poder pagando por roupas caras e, logo, merecendo a mulher bonita, Roy não considera ele uma ameaça, a ponto de nem se irritar. O problema de Natan não é o que ele faz, ou deixa de fazer. O problema é que ele quer a atenção dos poderosos, Ted e Roy (este último, inclusive, é um dos roteiristas da série). Natan termina seu processo em direção ao sucesso mandando Ted se fuder e indo trabalhar para o "inimigo".

Por fim, e o mais problemático na minha opinião, é o personagem do bilionário Edwin Akufo. Sedutor, conhecedor de arte e boa comida. Oferece a Sam poder, fama e muito dinheiro, além da oportunidade de melhorar seu país natal e ter orgulho de sua origem africana. Bilionário, tem aos seus pés tudo que quer. Entretanto, quando Sam recusa sua oferta, ele reverte à barbárie. Ameaça arruinar a vida de Sam, ao que este responde sorrindo e achando graça. Akufo então descreve como irá defecar na casa onde Sam nasceu, queimar tudo, e defecar novamente em cima das cinzas; enforca um manequim e, novamente, mostra que está defecando sobre ele. Tudo isto sob o sorriso incrédulo de Sam, que parece contente de saber que fez a escolha certa: ser o terceiro jogador em um time pequeno, atrás do homem branco, e da mulher branca que nunca será dele.

O problema com estes arcos é que estas são as poucas representações de minorias com algum tipo de poder na série. Enquanto os personagens brancos (Ted, Rebecca, Keeley, Roy, Coach Beard, Jamie and Higgins) tem seu privilégio garantido e não questionado, a ascensão de Natan ao poder, assim como de Akufo, resulta em personagens cobertos de ódio, rancor, ameaça e traição (e fezes e cuspe...). A mensagem não podia ser mais clara: oferecer às minorias poder é inútil, porque eles não sabem o que fazer com ele. Os exemplos de "boa minoria" são de Sam, obediente, subserviente aos interesses dos brancos, versão moderna do "negro que ri" (sim, ele sorri o tempo todo); e da Dra. Sharon, versão moderna da negra sábia, que, quando trata de Ted Lasso, acaba com ele "fazendo dela uma melhor terapeuta" no processo. Os roteiristas estavam tão desorientados com uma personagem negra inteligente e bem sucedida, que tiveram que desaparecer com ela, literalmente, sem dar uma explicação. A pessoa que veio resolver os problemas do time acabou mentalmente desestabilizada... porque o Ted Lasso resolveu fazer terapia.

Voltando ao meu sentimento de abandono... Terminei a série triste. Tenho visto séries populares fazendo essa gracinha comigo. Eles começam com uma premissa super moderninha:

- Modern Family: família de gays, imigrantes, divorciados;

- Weeds: mãe de família vendendo drogas;

- Ted Lasso: homens sensíveis e gentis, mulheres independentes e inteligentes;

- For All Mankind: mulheres astronautas.

A primeira temporada ganha seu coração, e abre sua mente para o que está por vir. Então, a guinada. Valores conservadores e racistas vão tomando conta. As mulheres pagam preços caros por sua independência (geralmente são bem sucedidas, mas sozinhas e sem amor). As minorias ou apoiam os brancos dominantes, ou são estereotipadas e transformadas em bandidos. Eu ficaria mais triste, se não achasse que é de propósito. Que é uma forma discreta (e eficiente) de furar a bolha, e ganhar os ouvidos de uma platéia jovem, liberal e moderna, lentamente apresentando conceitos e ideias mais velhas do que o futebol.

Agora fico de olho: se tem gente bebendo álcool o tempo todo, já desconfio. Se estão fumando, é batata. Não vou reverter à barbárie. Vou colocar meu ponto de vista, de maneira clara e madura, neste post. E escolher melhor com o que eu gasto meu tempo.

3 de agosto de 2021

Marvel: chega. (ou - Por quê o final de Loki é muito pior do que eu podia imaginar)

Eu não sou uma garota típica. Eu cresci lendo histórias em quadrinhos. E não era turma da Mônica, ou Pato Donald. Eu gostava mesmo era de revistinha de super-herói. O Batman era de longe meu favorito, gastava todo dinheiro que tinha em graphic novels. 

Mas outros heróis como a Liga da Justiça e Homem Aranha também tinham seu lugar no meu coração. Li os clássicos todos, inclusive Crise nas Infinitas Terras. Eu era mais DC do que Marvel, mas comprava a cada 15 dia revistas para acompanhar sagas em diversos volumes. Só parei depois que casei, e foi com imensa tristeza que vendi a coleção quando me mudei para o exterior. 

Então, quando os heróis começaram a aparecer na telona, eu fiquei maravilhada. Não perdi um único filme até hoje. Eu que arrastava marido e amigos para ver na pré-estréia o último fortão de capa e espada voando e socando. 

Quem acompanha esse blog sabe do meu feminismo militante. Eu reconhecia todos os problemas, a objetificação, as saias curtas e os saltos altos. Mas, dava um desconto. Achava que, quanto mais mulheres vissem os filmes pressionassem, mais ia melhorar. Problematizava, pensava em como podia ser melhor, e bola pra frente. E, às vezes, era. 

Capitã Marvel vem à cabeça como a melhor tentativa. Apesar de ainda ser loira, branca e jovem, já era a pessoa mais poderosa do filme, a história era boa, e, supresa, ela que salva todo mundo no final. Parecia uma nova era onde eu ia poder torcer por mulheres também. 

Mas durou pouco. Acabei de terminar a primeira temporada de Loki. Eu já tinha posto a Marvel de quarentena depois de Wanda Vision, por motivos que valem outro post, mas minha filha adolescente falou bem, resolvi dar uma chance.

--- MEGA spoilers daqui para frente --- 

Os primeiros 5 episódios (de 6) são um primor. Idéias interessantes, personagens com profundidade, praticamente o mesmo tempo de tela dos Lokis protagonistas. Me incomodava um pouco ela não ser Loki, ser Sylvie, mas, vá lá, acho que vão explicar depois (não, não explicam). Eles jogam uma bola alta para a galera LGBT, identificando ambos como bi-sexuais, e vai parecendo que o simples fato dela ser mulher faz dela a melhor Loki de todos os tempos. 
  • Pausa para a pulga atrás da orelha número 1: Tem Loki jacaré. Tem, literalmente, dezenas de Lokis. E uma única mulher Loki. Isso cai no velho estereótipo da "mulher especial". Ou seja, mulheres comuns não podem ser heroínas, só as especiais, que, por definição, não são "mulheres de verdade"... mas, ainda estou confiando no futuro desta timeline. 
Em um dos primeiros 5 episódios tem uma cena que me deixou muito desconfortável: a bebedeira no trem. Depois de fazerem um esforço enorme para entrar no trem disfarçados, para carregar o dispositivo que é a ÚNICA chance que eles tem de se salvarem, a Sylvie dorme (aparentemente, só ela precisa disso), e o Loki cai na farra. Bebe todas, arruma briga e ambos acabam atirados para fora do trem e o dispositivo destruído. Logo depois desta cena, ele pede desculpas, e fica TUDO BEM!! O cara acabou de ser irresponsável, destruiu a única esperança dos dois, e a desculpa é: é assim que eu sou. O problema com essa lógica é que homens que bebem demais e maltratam suas companheiras, destruindo a vida de ambos, são muito reais. A série normatiza isso. No final deste mesmo episódio, eles tem uma cena romântica juntos, dando a entender que isso é amor de verdade. A única coisa entre estes dois momentos são eles correndo para tentar alcançar a nave. Ele não faz nada para se redimir, ou dizer que vai ser diferente. Eu já começo a torcer contra eles ficarem juntos. 

Aí a gente chega no último capítulo. De cara, já tem problema sério: ao oferecer aos dois Loki (que, lembra aí comigo, são teoricamente a mesma pessoa) o futuro ideal, o Loki macho tem a opção de, LITERALMENTE, ter todo o poder do mundo, inclusive as Infinity Stones, que, se você acompanha Marvel, é tipo tudo. Enquanto isso, a Loki mulher pode ter... uma vida sem solidão, com boas memórias. OI?!?! Desculpa, ouvi direito? O irmão aqui leva o UNIVERSO conhecido e eu ganho família, cachorro e casa com cerquinha branca? 
  • Pulga atrás da orelha 2 (que agora já virou tipo aranha caranguejeira): A ideia de que mulher só quer casa, família e amor e que, quando não tem, vira frígida, maluca e agressiva é outro estereótipo prá lá de velho, usado para justificar porque a mulher tem que "escolher" entre carreira e amor. Se ela quiser sucesso, vai ter que se conformar em ser infeliz e rancorosa. Essa pegou pesado. Tá ficando difícil de ignorar. 
Mais um tempo depois (quase infinito, porque o diálogo saiu pela janela, o ator que faz o super dono da porra toda está péssimo no papel, e eles repetem tudo 30 vezes para a galera ter certeza que entendeu) e o dilema que se apresenta é: derrubar o status quo (TVA) ou um futuro milhões de vezes pior. 
  • Pulga mordendo e arrancando pedaço da orelha 3 (com arrepios de flashback de Mulan remake): a ameaça de futuro muito pior é, de longe, a ameaça mais eficiente contra derrubar o patriarcado. Esse argumento é a famosa falácia do espantalho, onde a pessoa exagera tanto o que vai acontecer que você fica com medo, mesmo que as consequências reais sejam muito menores (tipo: se deixar casar homem com homem, daqui a pouco tão casando galinha com gente!). Toda vez que alguém defende ditadura perto de mim, dá até arrepio. Mesmo de brincadeira. Pode não, Marvel. 
Aí tudo desgringola de vez. É tanta coisa, que eu vou ter que fazer lista: 

1. A Loka diz que foi pessoal para ela, o CARA (não sei o nome da figura) ter acabado com a vida dela. O CARA responde que tá de boas porque ela fez coisas ruins. Argumento tipo "direitos humanos para pessoas direitas". Tá, combina com a defesa da ditadura. Arrepios novamente.

2. A Loka decide matar o CARA (que tinha acabado de confessar que tava mentindo 10 segundos antes). O Loko pula na frente. Ignora o fato de que ela ia ter rancado o pescoço dele fora porque ninguém pára uma espada no meio do golpe. Vai para a parte que o Loko resolve dialogar e ela sai na porrada com o Loko. Loko todo legalzinho, querendo pensar, e ela sangue nos óio só descendo o cacete. 
  • Pulga já fazendo festa com o percevejo 1 milhão: Mulheres não são racionais. Mulheres são loucas desvairadas. Mulheres não podem ter poder porque elas não sabem pensar na hora, e são muito emotivas. Ai que preguiça... 
3. Aí, a Loka parte o coração do Loko. Ele se abre, frágil, e ela dá um pé na barriga dele (literalmente).  Eu ia respeitar mais o roteiro se, nessa hora, a Marvel tivesse coragem de assumir o "plot twist", e a Loka matasse o Loko. Porque ela não faz isso. Ela manda ele para um outro universo, deixando aberta a porta da dúvida: ela gosta dele ou não. Não tem a menor lógica. Se ela gosta dele, senta e conversa dois minutos (aliás, a escolha lógica nesse momento). Se não gosta, passa a faca e continua na missão. Fica difícil continuar envolvida na trama quando os personagens começam a fazer coisas sem sentido.

4. E aí vem é o momento Incel do negócio. Incel vem de "involuntary celibatary" - celibatário involuntário. É um grupo de homens que tem raiva das mulheres porque eles querem namorar e transar, mas as mulheres teoricamente não gostam de homem decente, só homem rico, então eles não tem companheiras. Geralmente tem ódio de feministas e acreditam que são extremamente injustiçados. Na série, a gente fica uns bons minutos vendo a cara do Loki se transformando. Que o cara bonzinho, que confia em mulher, na verdade se lasca, e que não dá para confiar em mulher mesmo. 

O que tá faltando nesse momento é a perspectiva dela. Se ela não gosta dele, qual o problema? Ela não é obrigada a gostar dele. Aliás, ele não deu lá muitas razões para ela gostar dele. A única perspectiva que a gente tem aqui é a dele, que parece que está "evoluindo e aprendendo a amar", através de tortura (!!!) e insights através de interrogatórios com a polícia (!!!!).  Mas ela está em uma missão, única. De destruir as pessoas que acabaram com a vida dela quando ela era só uma criança. Ele cresceu como um príncipe! Ela foi uma criança foragida vivendo literalmente em zonas de guerra. Ela não era sozinha porque tava a fim. Ela foi uma criança em situação de vulnerabilidade a vida toda! Meia dúzia de encontros com um cara mentiroso, beberrão e egoísta deviam fazer ela mudar de ideia?

5. E termina o episódio com ela matando o cara, e as timelines explodindo. Claro que vai ter outra temporada, e esses finais que não são satisfatórios é a receita atual da Netflix em geral e da Marvel em particular para te viciar. Essa insatisfação associada com um gancho surpreendente para a continuação é necessária para garantir que você volta na próxima temporada. Onde eles vão vender mais tempo para mostrar os personagens bebendo uísque. Aliás, tem multiversos na Netflix, mas a única coisa comum em todos eles é que a galera bebe uísque pra valer. E fuma quando pode. Começa a reparar.

Conclusão final: a Marvel não melhorou. A caricatura de mulher sexualizada, bunduda e peituda e de salto alto foi substituída por outras. Da loirinha bonitinha e comportada que ajuda de vez em quando. Da mulher corajosa e fria que não consegue ser racional, só agressiva. Que o que toda mulher quer é ter casa, comida e roupa lavada. Que relacionamentos bons são com caras abusivos, mentirosos e que bebem. Que se Loki fosse mulher, seria bem pior. Pra mim deu. Não me pegam mais.

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Epílogo: As coadjuvantes. 

Se a representação feminina é problemática, as de mulheres de minorias não ajuda nada. 

Os protagonistas são duas pessoas brancas (três se contar o Moebius). Os negros, embora apareçam e tenham papéis importantes, estão desproporcionalmente do lado errado da história. 

O CARA é negro (além de cientista maluco), assim como a Juíza, que aparentemente sabe de tudo, mas mesmo assim prende criancinhas. A B-15 até que vira de lado, e ajuda os protagonistas e vai presa, depois que é, LITERALMENTE, iluminada pela mulher branca. O Loki negro trai os outros dois Loki, criança e velho, ambos brancos, que não voltam para a TVA e decidem ajudar Loka e Loko sem o menor motivo lógico. A única neutra é a C-20, que acaba assassinada pela TVA. 

Enfim, os negros acabam mortos ou presos. A única que se salva (?) é a Juíza, que ninguém sabe onde está, depois de trair o melhor amigo (branco), mentindo para ele. Não vou me alongar muito nessas análises porque esse não é meu lugar de fala, mas dá para ver claramente que não tá bom isso aí.

A Última Guerra

 O último mês viu o nascimento do ChatGPT . Pela primeira vez, um programa de computador é capaz de responder à perguntas como um ser humano...